26 Junho, 2019 / Papel

A mão que ensina o cérebro

Inventada pelos sumérios, na antiga Mesopotâmia, a escrita à mão é tão antiga e faz de tal forma parte de nós que nem nos ocorre questionarmo-nos sobre ela. Com mais de 3500 anos, podemos afirmar, com convicção, que o mundo não seria o mesmo sem os caracteres deixados pela tinta primeiro em barras de argila, depois em madeira, papiro, pergaminho e, finalmente, em papel. E o ser humano também não.

Tudo mudou com a invenção de Gutenberg, no século XV. E voltou a mudar com a máquina de escrever, na segunda metade do século XIX. E mais ainda com o computador, já século XX adentro. Hoje, completamente instalados no terceiro milénio, com a tecnologia presente em todos os aspetos da nossa vida, seguindo connosco no bolso para todo o lado, escrever à mão continua a ser uma habilidade imprescindível, que nos afeta como pessoas desde que aprendemos as primeiras letras.

“A escrita à mão é importante, sobretudo numa determinada fase da vida, quando começamos a ganhar competências de escrita”, refere Nuno Leitão, diretor pedagógico da Cooperativa de Ensino A Torre, explicando: “Porque escrever é um ato mental, mas que tem o corpo associado. Há uma clara ligação da mão ao cérebro, que permitiu o desenvolvimento específico da espécie humana”.

Marta Gonçalves, psicóloga educacional, acrescenta que “escrever à mão influencia a coordenação viso-motora de forma diferente do que escrever no teclado, uma vez que trabalha competências distintas”, e que “a motricidade fina é muito trabalhada com a caligrafia”.

Escrever à mão, formando palavras, envolve a mente e promove o pensamento estruturado. Ativa o nosso cérebro como um todo – e, por isso, conseguimos lembrar-nos melhor de coisas que escrevemos – e ajuda-nos a desenvolver o vocabulário e a ortografia. Tem uma importante função cognitiva, e, observa Nuno Leitão, também uma dimensão metacognitiva: “O texto escrito à mão é um texto menos automático do que no teclado. É mais pensado, mais sentido. A substância do que tenho para dizer é mais criativa quando escrevo à mão. Há uma maior intencionalidade no que quero transmitir.”

A arte de desenhar letras

A palavra “caligrafia” – do grego kalli, “beleza” + graphẽ, “escrita” – significa, quase que literalmente, “escrita bela”. Antes da invenção da imprensa, os calígrafos eram copistas, de letra imaculada, que transcreviam os livros. Dessa forma, o conhecimento ficava armazenado, numa letra legível e agradável à vista. “Quando os copistas escreviam um livro, não o faziam na sua letra normal de todos os dias”, explica o calígrafo João Brandão. “Com a impressão, isto desaparece, e o calígrafo deixa de ser copista para passar a ser uma espécie de artista”, diz.

Designer gráfico de profissão, foi a ligação intrínseca desta atividade à tipografia que despertou em João Brandão o interesse pela caligrafia. Hoje, mudou completamente a sua escrita do dia a dia e, apesar de defensor acérrimo da escrita à mão, “com todas as suas vantagens no desenvolvimento neurológico e da motricidade fina”, argumenta que “a letra que se ensina as crianças a fazerem é demasiado complexa e pouco eficiente”.

“A caligrafia que se ensina às crianças na escola, a chamada ‘letra de primária’, deriva do copperplate, que é o estilo que encontramos nos tais documentos antigos elaborados pelos copistas. É uma caligrafia muito bonita, mas muito difícil, e nem por isso a mais legível”, diz. Defende o itálico – a letra que adotou para si e que ensinou ao filho quando ele tinha 9 anos – como uma solução mais simples e mais eficaz: “É um estilo que tem técnicas muito específicas, criadas para a performance, para a velocidade e a eficiência. É na mesma uma escrita à mão, cursiva, com ligação entre as letras – foi criada para ser rápida, levantando o mínimo de vezes possível o aparo do papel –, mas sem os caracóis e os ornamentos da derivação do copperplate que se ensina nas escolas, que tem, inclusive, uma distinção e clareza difícil entre algumas letras”.

O professor Nuno Leitão refere também a questão da complexidade da ‘letra da primária’. “A caligrafia que ensinamos às crianças no ensino básico podia ser mais simples?”, pergunta, para logo a seguir responder, “Sim. Há de certeza a possibilidade de, mantendo a lógica da escrita à mão como fase inicial da apreensão da escrita, encontrar formas mais fáceis do que uma caligrafia com tantos floreados.”

Mas a opção apenas pela aprendizagem da chamada letra de imprensa não é suficiente. A psicóloga educacional Marta Gonçalves afirma que “aprender só letra de imprensa trabalha pouco a flexibilidade cognitiva” e que “é importante que a criança reconheça que há várias formas para a mesma letra”. Enquanto Nuno Leitão refere que “a letra de imprensa tem a vantagem de ser a que as crianças mais veem reproduzida”, mas não pode ser exclusiva, uma vez que é uma letra que se escreve separada, “e a ligação das letras tem vantagens quer ao nível da motricidade, quer ao nível cognitivo: o ser capaz de escrever uma palavra sem levantar a caneta do papel, estabelece ligações interessantes na fluidez, com implicações ao nível do pensamento”. E acrescenta: “Além disso, e digo isto de um foro mais intuitivo do que científico, o ligar as letras e escrever a palavra seguida permite-me centrar mais no significado da palavra do que na sua ortografia”.

A minha caligrafia é melhor que a tua

O processo de aprendizagem passa pelas crianças irem aprendendo a ligar as letras, mas a caligrafia acaba por ter também uma dimensão de expressão da personalidade, como explica Nuno Leitão: “Parte-se deste padrão comum, mas depois cada um de nós ‘ganha’ a sua própria letra. Fazemos uma apropriação pessoal do que aprendemos. No ensino, devemos pedir aos miúdos que tornem legível o que escrevem, mas não devemos contrariar a sua apropriação do alfabeto. Cada um ter ‘a sua’ letra é positivo. De uma forma mais empírica, do que observo no dia a dia, o tipo de letra já denota o tipo de mente; se é uma mente mais concreta, mais lógica, ou uma mente mais sonhadora, mais poética”.

Há uma caligrafia mais prática – para todos e, ao mesmo tempo, especificamente para cada um de nós – e uma caligrafia mais erudita, que é uma arte, um culto. “É o recuperar da tal letra para os livros”, explica João Brandão. “As pessoas estão a voltar a valorizar a manualidade. Vivemos num mundo muito tecnológico, muito industrializado, e há um cansaço disso, sente-se a necessidade de fazer um contraponto. Mesmo no design, a caligrafia voltou a estar na moda. Agora vamos a um supermercado e as letras dos cartazes são em giz, as hamburguerias gourmet têm todas ardósias com a lista escrita à mão, e há letras à mão em t-shirts… a caligrafia está mais presente do que nunca.”

João Brandão é professor de Design na Faculdade de Arquitetura de Lisboa, onde, todos os anos, dá um workshop de caligrafia aberto à comunidade.

Arte ou ofício, mais bela e uniformizada ou mais única e pessoal, a caligrafia mantém uma importância fundamental na evolução do ser humano, e escrever à mão é parte imprescindível de aprender a escrever e a ler. Diretamente da mão para o cérebro e do cérebro para a mão, num ciclo infinito, o gesto liberta a palavra na folha em branco, transmitindo ideias e pensamentos, intenção e emoção.

Escrever à mão desenvolve várias competências associadas. Mas a caligrafia tem também uma componente mais artística, que nem todos dominam.

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