23 Fevereiro, 2019 / Companhia

Os vinhos da Herdade de Espirra

As uvas são apanhadas à mão e depois fermentadas em lagares, também com recurso à pisa artesanal, sem intervenções mecânicas. Sendo fiéis à tradição da colheita da casta Castelão, os vinhos da Herdade de Espirra homenageiam a história e tradição desta região e destas gentes.

São oito da manhã e o sol aquece levemente os campos da Herdade de Espirra, na planície da Península de Setúbal. Os carreiros perfeitos e verdes, carregados de uvas, são a perder de vista, com 37 hectares de área plantada. Ao fundo, vemos um trator e grande azáfama ao seu redor. À medida que nos aproximamos, as formas e as cores definem-se, descortinando vários homens e mulheres, quase todos de boné enterrado na cabeça, que trabalham dobrados, cortando os cachos de uvas e enchendo os grandes baldes.

Maria Paula Bastos, de 51 anos, já perdeu a conta ao número de vindimas que fez na vida. O suor escorre-lhe no rosto e é ela a mais animada do grupo – é a que a canta, a que diz piadas e a que motiva os colegas quando o sol aperta e o corpo começa a quebrar. “Em toda a minha vida só trabalhei em estufas e no campo; há dias que se levam melhor do que outros, mas faz tudo parte do ofício”, afirma, para logo acrescentar que “o importante é, no final do dia, sair com um sorriso nos lábios”. Pelo segundo ano consecutivo, Maria Paula trouxe a filha, também Maria, de 20 anos, para trabalhar nas vindimas. “Gosto de estar aqui por causa do convívio”, lança a jovem, ao mesmo tempo que corta os cachos com destreza.

A rasgar os carreiros ao volante do trator que transporta as uvas acabadas de apanhar, Maria Helena, de 52 anos, é quem supervisiona a vindima. É a trabalhadora mais antiga deste grupo, a “chefa”, como é conhecida. Há dezassete anos que faz este trabalho sazonal na Herdade de Espirra e conhece estes campos como ninguém. Quando não está a vindimar, está na poda, ou então a rotular as garrafas na adega. É a primeira a chegar, trata logo dos garrafões de água para os trabalhadores e transporta-os para os campos. “Antigamente, as pessoas que vindimavam eram mais velhas, tinham mais sabedoria para estas coisas; mas tudo se leva bem”, afirma a encarregada, dando o sinal para a pausa.

É tempo do corpo descansar. Um intervalo de quinze minutos para comer qualquer coisa e para beber água nos canecos de alumínio que muitos trazem amarrados ao cinto.

Cabe aos homens carregar e despejar os baldes de uvas no trator. Por se tratarem de castas com mais de trinta anos e os cachos de uvas quase rasarem o chão, não há qualquer tipo de mecanização.

Luís Pereira, de 55 anos, é operário fabril, mas trabalha aqui nas suas férias para ganhar um dinheiro extra com as vindimas. Marido de Maria Helena, é ele quem recebe os baldes de uvas e quem, ao meio-dia, quando o turno da manhã termina, conduz o trator até à Associação de Desenvolvimento Regional da Península de Setúbal (ADREPES) para a pesagem. Hoje, só da parte da manhã, o grupo apanhou três toneladas e meia de uva. Luís repete o mesmo trabalho ao final do dia, quando a jorna termina. Depois, conduz o trator até ao Tegão de receção, onde descarrega a uva para ser encaminhada para o lagar e pisada.

O pisar da uva

Herdade de Espirra - Pisar da Uva

Quando os trabalhadores do campo fazem um intervalo para almoçar, Mário Azenha, de 54 anos, encaminha-se para o lagar para pisar a uva. Na Herdade de Espirra, esta operação continua a ser feita artesanalmente. A vindima manual permite uma criteriosa e cuidada seleção das uvas: apenas as que estão em excelente estado sanitário e de maturação são colhidas e enviadas para a adega.

Descalço, com calções e t-shirt, Mário entra dentro do lagar com cerca de nove toneladas de uva. Os seus pés calejados apreciam a temperatura daquele caldo bordeaux. “Quando aqui entramos está frio, mas depois, com a fermentação, começa a ficar quente”, explica o homem que trocou o trabalho de mecânico de automóveis pelo do campo. Com cuidado, para não escorregar, começa a “caminhada” pelos quatro cantos do lagar, levantando bem alto os joelhos para revolver o mosto. Sob os seus pés, a fruta vai libertando o sumo.

A uva fica no lagar durante cerca de dez dias a fermentar, sendo pisada diariamente. Depois, quando o mosto fica pronto, ou seja, quando todos os açúcares estiverem transformados em álcool, o líquido é retirado para envelhecer em barricas de carvalho francês. É assim que nasce o vinho da Herdade de Espirra.

Terroir único, casta tradicional

A Herdade de Espirra tem 1 700 hectares, e grande parte do território tem uma ocupação florestal – plantações de eucalipto, sobreiro, pinheiro-manso, espaço de pastagem para pastoreio de gado miúdo, além dos viveiros e dos 37 hectares de vinha. “A nossa vinha é uma demonstração das preocupações de diversidade e de sustentabilidade da própria empresa”, garante Vasco Paiva, responsável pela Sociedade de Vinhos Herdade de Espirra. Aqui convivem diferentes culturas, diferentes espécies florestais, e uma vinha velha, com mais de trinta anos, na qual predomina a Castelão, uma casta quase rara na região. “Produzimos aqui um excelente vinho, várias vezes premiado, seguindo um método tradicional, de apanha manual e de pisa a pé, mantendo uma certa originalidade e um caráter único no terroir desta região”, defende Vasco Paiva.

A casta principal da Herdade de Espirra é, portanto, a Castelão, que ocupa cerca de 32 hectares dos 37 totais de vinha. É uma casta portuguesa, que se dá muito bem em solos arenosos, como é o caso da Península de Setúbal e zonas limítrofes do Alentejo. Os cinco hectares de vinha nova são divididos entre as castas Aragonês, Touriga Nacional e Alicante Bouchet.

A diferença entre vinhas velhas e vinhas novas está intimamente relacionada com a capacidade de produção da videira. Uma vinha velha produz, naturalmente, muito menos uva do que uma vinha nova. Por norma, a Castelão, no auge da sua idade, com dez ou doze anos, produz entre 12 a 14 toneladas de uva por hectare; no caso das vinhas de Castelão de Espirra, dada a idade que apresentam, a produção ronda as cinco ou seis toneladas por hectare. Essa baixa produção vai originar vinhos mais concentrados, quer a nível de cor, quer a nível aromático ou mesmo de estrutura.

Ana Varandas, enóloga da Herdade de Espirram diz que o trabalho de um enólogo consiste em conseguir produzir as melhores uvas, fazendo um acompanhamento intensivo do desenvolvimento das mesmas, para que a intervenção exterior seja a menor possível e o trabalho final seja excelente. Apesar do calor que se fez sentir este verão, acredita que a colheita de 2018 poderá ser excelente. “Prevejo uma produção muito boa, eventualmente para um vinho reserva”, confidencia.

A vindima é feita de forma completamente tradicional, recorrendo à apanha manual e à pisa a pé

Os vinhos da Herdade de Espirra

Vinhos Herdade de Espirra

Pavão de Espirra Rosé

As uvas tintas castelão são vindimadas mais cedo, para terem menos grau. São colhidas manualmente e sujeitas a uma maceração de duas horas. De seguida são esmagadas e fermentam sem qualquer contacto com as peliculas, em depósitos de inox, com uma temperatura controlada através de um chuveiro de água para manter a fermentação entre os 16 e os 18 graus.

Pavão de Espirra Tinto

O início da vindima é feito nos talhões de maior produção, que vão originar um vinho de menor graduação alcoólica. As uvas são colhidas manualmente e esmagadas por pisa a pé nos lagares durante todo o período de fermentação, seguindo depois para os depósitos da própria adega da herdade. É um vinho frutado, com aroma a frutos vermelhos.

Herdade de Espirra Tinto

Há talhões que, tradicionalmente, asseguram os vinhos topo de gama. Nestes, as uvas são colhidas mais tardiamente, para assegurarem um ótimo estado de maturidade. As uvas são colhidas manualmente, esmagadas por pisa a pé e deixadas em contacto prolongado com a casca, para extrair todos os aromas e toda a complexidade do fruto. A fermentação decorre nos lagares até estar completa, seguindo-se 12 meses de estágio em barricas de carvalho francês e outros 12 meses em garrafa, antes de seguir para o consumidor.

Herdade de Espirra Tinto Método Tradicional

As uvas são colhidas manualmente, esmagadas por pisa a pé e deixadas em contacto prolongado com a casca para extrair toda a complexidade da casta Castelão. A fermentação decorre nos lagares até estar completa e é logo engarrafado, sem contacto com a madeira. Evoca o método tradicional de como o Castelão era produzido na região, sem barricas.

Herdade de Espirra Reserva

É o vinho topo de gama, e só é produzido em anos com colheitas excecionais. As uvas colhidas manualmente são esmagadas por pisa a pé e deixadas em contacto prolongado com a casca, para extrair os aromas e a complexidade do fruto. A fermentação completa-se nos lagares da própria adega da herdade, seguindo-se 24 meses de estágio em barricas de carvalho francês e 12 meses em garrafa.

 “A nossa vinha é uma demonstração das preocupações de diversidade e sustentabilidade da própria empresa” – Vasco Paiva

Vasco Paiva e Ana Varandas
Vasco Paiva e Ana Varandas
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