25 Março, 2019 / Papel

O papel é criatividade

Para escrever, desenhar, pintar, dobrar, construir, cheirar… Os limites da utilização do papel enquanto suporte para a arte e a criatividade estão apenas na imaginação de cada um. Damos-lhe a conhecer cinco casos reais de quem não passa sem papel no seu dia a dia profissional.

“Expomos muito mais facilmente as emoções no papel” – Oupas!, designers

Designers
Sofia, Joana, Cidália e o gato Tobias

São designers gráficas, mas os trabalhos manuais em papel cruzaram-lhes a vida profissional e teimaram em ficar. E a verdade é que não foi preciso insistir muito: o amor pelo papel, nascido nos riscos e rabiscos próprios da infância, foi cultivado ao longo dos anos e colhido já na faculdade, onde o incentivo dos professores para deixar o digital de parte desenvolveu o gosto e a vontade de criar com as mãos.

Joana, Cidália e Sofia são os rostos por detrás do Oupas!. Bom, na verdade há outro rosto a juntar ao trio, ou melhor, um focinho: o gato Tobias, inseparável companheiro e parte integrante deste estúdio de design. Do Porto para o mundo, e com o papel e cartão como matéria-prima privilegiada, criam desde pequenas peças a cenários para eventos, com uma abordagem ecológica e socialmente responsável.

peafowl“O papel é um material que faz todo o sentido para nós”, diz Joana. “O facto de ser facilmente reciclável é muito importante, porque criamos peças para um evento que vai durar dois ou três dias, e nem todos os clientes têm oportunidade de, depois, as guardar. Quando isso acontece, não há problema: recicla-se. Temos muita atenção aos gastos, do ponto de vista ambiental, e tentamos também passar essa sensibilidade ao cliente.”

O processo criativo no Oupas! é um círculo que começa e acaba no papel, como explica Sofia: “A ideia começa a desenhar-se no papel, com um esboço que lhe dá forma. Depois usamos ferramentas digitais de modelação 3D, o que nos ajuda a nós e ao cliente a visualizar a peça. E, finalmente, voltamos ao papel, para, com as nossas mãos, materializar o trabalho”.

“O papel é tão rico em texturas e em cores, que às vezes só isso já nos convida a desenhar, a trabalhar com ele”, refere Cidália.

“O papel torna as coisas mais reais, mais verdadeiras. Exige mais responsabilidade, tudo tem de ser mais refletido, mais pensado, porque é mais definitivo”, conta Sofia.

Um mundo sem papel? Não acreditam nele. “O papel é tão natural em nós, nunca vamos deixar de o utilizar. Podemos redefinir como o usamos, mas isso não vai desvalorizá-lo, pelo contrário: as coisas especiais vão continuar a ser feitas em papel.”

As ideias nascem no papel, em forma de esboço, e terminam no papel, na forma que o cliente desejar

“Desenho os meus pratos numa folha A4” – Kiko Martins, chef

Kiko Martins trocou a Gestão de Marketing pela cozinha de autor, mas não troca a agenda física pela do telemóvel. Para este chef – que visitou 26 países em 14 meses, absorvendo muito das diferentes culturas que hoje lhe servem de inspiração para cozinhar –, o papel ocupa um lugar de destaque na sua vida. “Por muitas aplicações e softwares de agendas e organização que tenha no telemóvel ou no computador, uso uma folha A4, em branco, para pensar nos meus pratos, para ‘desenhar’ os elementos, e também não dispenso uma agenda física para escrever todos os meus compromissos e o que vou delegando no dia-a-dia”, revela.

Chef Kiko
Tecla as fichas técnicas das receitas no computador, mas é na folha de papel que confia para desenhar o prato

Aos 40 anos, Kiko Martins aposta numa vida cheia de aventuras. Depois de se licenciar em Gestão de Marketing, em 2003, rumou a Paris para estudar na Escola de Cozinha Cordon Bleu, tendo passado, nos anos seguintes, por alguns dos restaurantes mais famosos do mundo, como o Ledoyen (Paris) e o The Fat Duck (Berkshire, em Inglaterra). Fez um ano de voluntariado em África, e em 2011 decidiu, juntamente com a mulher, viajar pelo mundo para absorver o melhor da gastronomia internacional. Dessa experiência resultou o livro “Comer o Mundo”. Um livro em papel, como aqueles que gosta de ler. Atualmente tem quatro filhos, gere oito restaurantes e dirige 250 Colaboradores que se encarregam de fazer chegar ao cliente os pratos que ele próprio imaginou e criou, tal e qual.

A relação com o papel é forte e está para durar, mas Kiko Martins admite que o mundo tecnológico, inevitavelmente, a transformou um pouco. Por exemplo, hoje nota que tem menos apetência para escrever e que descuidou a caligrafia desde que passou a teclar as fichas técnicas das receitas no computador e no telemóvel. No entanto, o papel é um vício diário, no qual desenha e sobre o qual pensa nos elementos das suas receitas: “Faz parte do meu processo criativo, sobretudo no momento do desenho, do esquisso dos pratos, numa vertente mais gastronómica e de organização. É assim que crio o pensamento de hierarquia de importância das coisas. Faço muito o raciocínio de uma árvore – quais são os frutos, os troncos, a estrutura, penso um bocadinho sobre isso e organizo tudo numa folha de papel. O próprio desenho das cozinhas e de outros espaços é todo feito em papel, e é importante ter essa ferramenta”.

legenda> Tecla as fichas técnicas das receitas no computador, mas é na folha de papel que confia para desenhar o prato

“Folhear um livro é como uma viagem olfativa” – Lourenço Lucena, perfumista

É um contador de histórias olfativas, e é num caderno de papel que aponta os aromas e as fórmulas – o equivalente às personagens e ao enredo – que mais tarde vão dar origem a um perfume, com características únicas e pessoais. Lourenço Lucena é perfumista e o único português membro da Société Française de Parfumeurs, a conceituada sociedade francesa onde se encontram os maiores criadores e os maiores perfumistas do mundo.

Perfumista
Na perfumaria, o papel é, simultaneamente, ferramenta e facilitador de escolha

Tudo começou em 2005, quando decidiu matricular-se na escola Cinquème Sens, em Paris. Em dois anos concluiu a formação e em 2017 lançou o seu primeiro perfume – Acqua di Portokáli –, uma fragrância que é uma homenagem à laranja portuguesa.

Apesar da “invasão” do digital na sociedade e da dependência dos smartphones e dos tablets, o perfumista acredita que é na ligação entre o que é físico e o que é sensorial que os seres humanos se relacionam com os outros e com o mundo que os rodeia. “Folhear um livro, por exemplo, usar o tato e sentir aquele objeto nas mãos, fazer uso do nosso olfato e cheirar o papel, é algo que nos faz sentir verdadeiramente humanos, vivos. O digital não tem essa capacidade de nos elevar”, diz.

Sempre que cria um perfume, Lourenço Lucena conta uma história. Essa história, que pode ser a referência a uma pessoa, a uma recordação de viagem ou até a homenagem a uma emoção, é escrita à mão num pedaço de papel. “Esse é o meu ponto de partida, inteirar-me da história. Depois, o meu trabalho passa por encontrar as matérias-primas que, combinadas entre si, resultam na tradução dessa história em fragrâncias. É um trabalho complexo, porque na composição de perfumes escrevem-se e testam-se dezenas e dezenas de fórmulas até se encontrar a certa.”

Finalmente, quando o perfume está criado, as tiras de papel que se encontram nas perfumarias, prontas a serem vaporizadas, “são meios de transporte neutros, sem grande odor, e que permitem ao cliente experimentar uma diversidade de perfumes maior do que quando utilizamos a pele”. Desta forma, no mundo mágico da perfumaria, “o papel acaba por ser um facilitador no processo de escolha”, mas também uma ferramenta indispensável, porque “a alta capacidade de absorção do papel, somada ao cheiro quase neutro, permitem que o aroma do perfume se mantenha por muito mais tempo”.

“O papel é o princípio de tudo” – Gracinha Viterbo, designer de interiores

Foi durante a infância que Gracinha Viterbo descobriu que uma resma de folhas de papel em branco e uma caixa de lápis de cor era a brincadeira mais fascinante do mundo. Sentada à mesa da sala, deixava os lápis escorregarem sobre a folha vazia, observando, fascinada, como esta ganhava vida. E sempre sob o olhar atento e motivador da mãe, a icónica decoradora Graça Viterbo, cujas pisadas decidiu seguir quando tinha apenas dez anos de idade.

Designer interiores
Uma folha em branco é uma possibilidade infinita de criar, de fazer acontecer

Diz que a palavra que mais gosta é “vazio”, porque “é o princípio de tudo”. Com telas e pincéis à disposição, Gracinha cultivou ao longo da vida esse prazer de começar algo do início numa folha de papel em branco. “Ter os lápis ou as canetas espalhados na mesa é uma possibilidade infinita de ‘fazer acontecer’, de criar. Lembro-me da primeira vez que pintei fora das linhas e de a minha mãe me ter dito que não tinha qualquer problema. Penso que os meus olhos devem ter brilhado, porque desde então nunca mais deixei de pintar fora das linhas”, conta.

Com o atelier da mãe à disposição, e já com 14 ou 15 anos, maravilhava-se de puro encantamento quando via surgir, do nada, a magia da criação. “Quando começo um projeto, lá está ela: uma folha de papel vazia, branca. Para mim uma folha branca é o princípio de tudo; para os meus projetos, é sempre o sinal de que qualquer coisa está para acontecer”, garante.

Hoje, Gracinha, mãe de quatro filhos, gere a Viterbo Interior Design. Adora viajar e utilizar a comida, os têxteis e a cultura de determinados locais como fontes de inspiração a que recorre com frequência para os ambientes que cria. Encara o pedido de cada cliente como uma história que merece ser contada através da criação de algo pessoal e único.

Criadora compulsiva, camaleónica e dona de um estilo inconfundível – o turbante é a sua imagem de marca –, usa a tecnologia para as suas criações originais e irreverentes e também para estar a par dos seus três ateliers, em Portugal, Angola e Singapura. No entanto, para esta designer aventureira que faz destes três continentes a sua casa, “o mundo pode estar a virar digital, mas nada substitui uma folha onde cabe um universo de ideias e que é real, material, onde se escreve e desenham ideais e conceitos que um dia se tornarão na realidade de alguém”.

legenda> Uma folha em branco é uma possibilidade infinita de criar, de fazer acontecer

“As minhas partituras estão todas rabiscadas”, Pedro Amaral, maestro

Um maestro deve cumprir fielmente a obra de um compositor, mas existe sempre uma margem para a interpretação. Essa margem, definida individualmente, é anotada de forma clara na partitura, antes de esta chegar às mãos dos músicos que compõem a orquestra. “Ao estudar uma partitura, reforço as indicações que o próprio compositor inseriu. O que eu posso fazer é moldar o som, optar por uma interpretação com um andamento mais rápido ou mais lento, ou mudar o nível dos tempos e das intensidades”, explica Pedro Amaral, compositor, maestro e diretor artístico da Orquestra Metropolitana de Lisboa. “Daí que o papel seja mesmo importante no meu trabalho, porque é através dele que transmito a informação aos instrumentistas. As minhas partituras estão todas rabiscadas com sinais e marcações”.

As anotações à mão na partitura definem a interpretação do maestro sobre determinada composição

No fundo, a partitura da obra orienta de forma gráfica a composição musical. Todas as inscrições que Pedro Amaral anota são copiadas e distribuídas por cada um dos músicos. As anotações, que depois podem ser digitalizadas, servem também como memória visual para conduzir as peças musicais, e tudo começa na fase dos ensaios. “Embora use um programa de escrita musical, faço todas as anotações à mão, porque esse processo deixa uma memória física de como cheguei a determinado resultado. Toda a preparação do ensaio também é feita em papel. Uso metades de folhas A5 e é aí que estruturo o ensaio por itens, semelhante a uma lista de afazeres”, revela o maestro.

Quando sobe ao palco, grande parte do trabalho já foi feito nos ensaios. Ainda assim, nos dias de atuações, Pedro Amaral revê de memória todo o concerto, até porque o maestro é o responsável primeiro e último de tudo o que acontece em palco.

Pedro Amaral nasceu em 1972 e é um dos músicos europeus mais conceituados da atualidade. Habituado a ouvir música clássica desde pequeno, foi aluno privado de Lopes-Graça, licenciou-se em Composição na Escola Superior de Música de Lisboa e fez mestrado e doutoramento em Música e Musicologia do Século XX, em Paris. É presença habitual nos mais importantes festivais de música e trabalha regularmente com orquestras nacionais e internacionais. Como compositor, assinou a primeira obra em 2010 – O Sonho –, sobre a figura bíblica de Salomé, inspirada num texto dramático e inacabado de Fernando Pessoa.

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